O título que abre este texto é uma brincadeira, em tom de bom humor, a partir de uma discussão entre amigos sobre o crescente volume de textos gerados por Inteligência Artificial Generativa (ChatGPT, Gemini, Claude, Meta AI etc.).
A reportagem da Bloomberg “AI Detectors Falsely Accuse Students of Cheating—With Big Consequences” apresenta um problema sobre o uso das IAs para gerar textos e identificar textos gerados por IAs.
O problema? Professores têm usado essas ferramentas para identificar estudantes que geram seus trabalhos acadêmicos por IA, usando ferramentas de IA para isso e cujo resultado tem sido de falsos positivos.
Sabemos que a cola existe. Não se sabe ao certo se primeiro surgiu a avaliação ou a cola, mas desde os tempos antigos, uma aula desinteressante ou outros elementos como, procrastinação, metas irreais, falha na gestão do tempo, entre outros, contribuem para que alunos colem. E isso acontece até nas mais renomadas instituições do mundo moderno.
É a corrida entre quem tenta enganar e quem tenta não ser enganado. E nisso a educação, como diria Paulo Freire, deixa de ser transformadora e passa a ser punitiva, centrada em notas e em prejudicar o histórico do aluno que se esforçou em descobrir um novo método imbatível de colar numa prova.
Serviços como GPTZero e Copyleaks existem para auxiliar no processo de identificação de textos gerados por IA. Mas quando aplicados em textos escritos antes mesmo da popularização do ChatGPT, por exemplo, identificam esses textos humanos como sendo textos artificiais.
Veja, eu como pessoa neurodivergente, autista, tive meu desenvolvimento cerebral diferente do que se esperaria de uma pessoa neurotípica. Isso significa que minha mente interpreta sinais nervosos de forma diferente. Por exemplo? A dificuldade na leitura de entrelinhas numa conversa. Considere então outras pessoas neurodivergentes, outros transtornos de desenvolvimento, e todas as pessoas consideradas neurotípicas do mundo.
No total, somos cerca de 8.2 bilhões de “ser humaninhos” nesse planeta. Aproximadamente oito bilhões, cento e oitenta e quatro milhões, 581 mil pessoas nesse “pálido ponto azul” (frase cunhada por Carl Sagan, 1990, sobre uma fotografia da sonda Voyager 1 que mostra o planeta como um pequeno pixel azul no universo).
Toda essa diversidade de pessoas, pensamentos, idiomas e dialetos já é um desafio bem conhecido na comunicação: tradução. Entre aqueles que pegavam um dicionário e traduzia palavra-a-palavra (momento nostalgia da FNAC em São Paulo, na Av. Paulista, que tinha uma seção toda dedicada a dicionários de idiomas) ao surgimento das primeiras ferramentas online de tradução como o Babel Fish e o AltaVista, um grande problema neste processo é que a tradução, além de buscar o significado da palavra em outro idioma, envolve a compreensão cultural da frase proposta.
Se traduzirmos hoje a expressão “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, que no nosso português representa persistência, esforços constantes que moldam e superam obstáculos em alusão à força da água no tempo que é capaz de moldar rochas (como no Grand Canyon nos EUA, o Vale da Lua na Chapada dos Veadeiros em Goiás). Mas no inglês, essa expressão perde significado. Para alguns, a água mole seria aquela com baixo teor de minerais dissolvidos, gerando dúvida sobre sua relação com uma rocha dura e mesmo ao processo físico de furar uma superfície. Percebeu a problemática?
Ferramentas de IA generativa, como o ChatGPT, são baseadas no inglês. Ao gerar um conteúdo, elas o geram em inglês e, no caso de um usuário em língua portuguesa, elas traduzem do inglês para o português. Neste processo muita coisa estranha pode acontecer, como uma palavra muito usada no inglês ser traduzida, mas a palavra correspondente no português ser raramente utilizada por nós.
A IA sabe o que é artificial?
Por exemplo, se eu gero um texto sobre recursos hídricos:
No reino natural, vários elementos contribuem para uma preservação eficaz. A salvaguarda dos recursos hídricos desempenha um papel crucial. Além disso, assegurar a salubridade, a preservação eficaz e a prosperidade das gerações vindouras é primordial. Portanto, cada gesto para minoração do desperdício hídrico é essencial e contribui de forma substancial à preservação deste inestimável recurso.
Neste exemplo, a linguagem padronizada com repetição de termos, o vocabulário repetitivo no “além disso” e “portanto”, além da completa falta de toque pessoal, entrega que o texto foi gerado por IA. Na dúvida desconfie de um texto poético ou complexo demais para o nível de leitura que geralmente a pessoa ou a fonte oferece.
Embora o exemplo anterior seja uma clara demonstração de um texto artificial, a ferramenta de detecção de texto gerado por IA diz que ele é totalmente escrito por uma pessoa. 0% IA.
No contraponto, o “Poema da Necessidade” de Drummond (Andrade, Carlos Drummond de, Sentimento do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012) é classificado como 76% gerado por IA:
É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.
É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.
A menos que exista uma máquina do tempo no círculo dos intelectuais, poetas e escritores, certamente Drummond não conheceu o ChatGPT, embora o ChatGPT saiba bastante sobre Drummond.
E nem abordamos o plágio e roubo de propriedade, este sim mais grave e que merece uma boa discussão sobre ética.
O “crucial”, “no reino”, “essencial” e outros termos e estruturas de linguagem entregam quando o conteúdo foi gerado pela IA. E tem aos montes na Internet, em perfil de CEO ao porteiro, do estudante do fundamental ao pesquisador de pós-doutorado. Gerar texto na IA economiza um bom tempo, principalmente na ausência de criatividade e de cultura. Aqui, cultura diz respeito ao péssimo hábito de não ler livros, que ronda o brasileiro. Hábito este que enriquece o vocabulário, permite ampliar a visão do mundo e conhecer conceitos importantes. Mas na pressa do cotidiano, até mesmo o mais ávido leitor pode se render ao comando: “escreve um texto sobre água”.
Conclusão
As IAs generativas têm um valor real quando bem usadas. O problema é o excesso de confiança e a dependência dessa voz “padronizada”, consequentemente distante do que faz uma voz ou uma marca ser única. O erro primordial talvez tenha sido usar “inteligência” em “inteligência artificial”.
A IA pode ajudar, mas ela nunca deve tomar o lugar, a perspectiva e olhar do mundo, carregado de falhas, cicatrizes e aprendizados. Ao usarmos IA para “preencher” a comunicação sem critério, sacrificamos toda a autenticidade e o que nos faz humanos. Há uma linha tênue entre usar a IA para amplificar sua mensagem e deixar que ela tire a sua essência.
No mercado de influência, por exemplo, tem destaque aqueles que estão começando, que constroem organicamente seus conteúdos e promovem esta cultura de troca de valor. A Gombo valoriza isso e dá voz ativa a essas pessoas.
Então, antes de discutir a artificialidade ou não de um texto, necessitamos de um resgate importante da Educação como recurso para o desenvolvimento da compreensão de ser e estar no mundo. Enquanto estivermos centrados na identificação de trapaças, deixamos de lado toda a bagagem didática, pedagógica e filosófica que sustenta o nosso desenvolvimento humano.